O depois existirá?
Por Silvana Duarte
@silvanaduartepoeta
“Não! vegana, vegana”.
“Com o mosquito que está me picando, eu não sou vegana, não”.
Uma minúscula e apressada formiga corria pelos rascunhos branco marfim. Diminuta, como era, foi capaz de me tirar da enxurrada de reels do Instagram. “Devo matá-la ou não?” Pensamentos aleatórios vinham e ‘desvinham’ em minha mente. Enquanto eu acompanhava fixamente o zigue- zague frenético da formiguinha. Distante dali, clamava de fome uns filhotinhos piando por sua mãe. “Deve estar trabalhando, ela, certeza”.
Onde eu me encontrava, não havia avezinhos, nastúrzios ou lavandas, tampouco havia íris entrelaçadas em meus pés. Ainda que não fosse um cenário sonhado de minhas férias, tal como na obra “Suave é a noite”, ambientado na chiquérrima Riviera Francesa e escrita pelo americano F. Scott Fitzgerald. Quem não deseja descansar em uma paisagem bucólica como nas folhinhas de calendário vintage e em descrições românticas das novelas literárias?. É querer demais para quem passa 355 dias trabalhando?
Pés no chão, pude sentir a areia fresca do parquinho onde me encontrava. Devo reconhecer que a simplicidade local também tem lá seus encantos regados de sinestesia interioranas. Basta parar e só observar.
A formiga voltara, me despertando mais uma vez de minhas divagações, ela estava firme em atingir seu objetivo: repetindo-o incansavelmente. Defendo que todos devem ter objetivos na vida. O da formiga certamente é a comida. Não acho que ela busque apenas o orgulho de seu grupo. Diferente do passarinho em seu ninho, dependente de sua mãe, a formiga nasce praticamente pronta para o trabalho, não perde tempo, não para. Seu trabalho é a essência de sua vida, voltar para a rainha sem nada consigo? Jamais!. Muitas delas nunca voltarão para o formigueiro, mais uma, menos uma, são apenas formigas, apenas trabalham. Será!??? Divagando, me vi de novo: “sozinhas, sem nada, tadinha das formiguinhas, morrem trabalhando”. Talvez a morte seja a melhor opção que voltar de mãos vazias. Respirei conformada.
O ser humano também trabalha, a maioria trabalha feito formigas, muitos se perdem do mesmo modo, ficam isolados e não voltam mais para casa…Há quem insista que não são sós, muitos realmente estão cercados, mas lá dentro em seu âmago podem se sentir uma formiguinha desgarrada, em busca de diversos alimentos, trabalhando, trabalhando incansavelmente. E talvez se perguntem: E depois?
Há quem retorna tarde para suas casas, se banha, se alimenta, muitos comem a flor de lótus das redes sociais e adormecem, no dia seguinte, tudo se repete… Já uma grande parte nunca dormem, ficam em devaneio, ou em desvario com alucinógenos e hipnóticos. Esses também costumam retornar para sua rotina formigueira, afinal, é preciso atingir os objetivos – é um modo saudável de viver a vida, é preciso buscar o alimento de cada dia. Um dia se perdem, mas acham o caminho do formigueiro rapidinho.
Sem objetivos, nos sentimos vazios. Bom, a formiga tinha um objetivo: o de buscar a comida e pronto! Em contrapartida, nós humanos ao saciarmos nossa fome, fazemos o que então? E depois? Ter uma moto, pagar todas as prestações de um celular mega “galático”. último lançamento, cuja necessidade é considerada “urgente”, pagar o seguro do carro que ainda não foi quitado, e claro, fazer uma viagem. Objetivos não faltam para ninguém. Sem dúvida, é libertador alcançar todos estas metas, mas, e depois? O que nos difere das formigas? Nascemos, trabalhamos, compramos, pagamos e morremos.
Em um real e cruel mise-en-abyme as novidades refletem o eterno retorno do mesmo. Prefiro acreditar que tudo isso pode ser rompido. Em vez de ser como essa formiga desnorteada por entre as folhas de papel, prefiro andar com calma, apreciar o passeio. “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” São os sábios dizeres de Guimarães Rosa, adquiridos quando foi conhecer e vivenciar de perto as paisagens e a gente do interior mineiro, famosas em suas obras.
Um cara super atemporal, tinha muitos seguidores já profetizava: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'”. (Mateus 4:4). É, acho que não importa o resultado final, talvez não haja um caminho para a felicidade, talvez a felicidade seja o próprio caminho. Pelo menos é o que defendem monges há milênios.
Na teoria tudo é lindo, concordo com você caro leitor, quero ver na prática. As contas não são pagas por milagre, sem o “labore” de todo dia, sem os “santos bicos de todo dia”. Deus ajuda quem cedo madruga! Já dizia minha avó, minha coach preferida. Mas, e depois?
Vejamos Arnold Schwarzenegger, ele ficou milionário antes mesmo de ser o astro de Hollywood, investindo no mercado imobiliário. Trabalhou duro. Já estava com a vida ganha, mas seu lema de vida era: “siga em frente”, o ator era movido a desafios que nada tinha a ver com trabalho, mas como seu motivo de viver, a sua arte de viver.
Sua norma de viver tem até nome estrangeiro e chic: Ikigai, termo japonês que se traduz em: “razão de viver”, “objeto de prazer para viver”. Essa filosofia não é tão usual para nós ocidentais, afinal de contas, o ócio é visto como desculpa para a preguiça. Quem sabe, com o tempo, isso se transforme, pois nas escolas já há uma disciplina chamada Projeto de Vida, onde o Ikigaié citado como harmonia entre viver e trabalhar. Ao descobrir o próprio Ikigai, um jovem por exemplo, pode refletir e enxergar além, “construir” sua própria estrada, rompendo assim, então, destinos massacrantes e previstos por filosofias ultrapassadas e escravizadoras: pagar boletos e mais boletos. E depois?
Triste é saber que a maioria só descobre seu Ikigai ao se aposentarem, que sorte! Muitos nem chegam até lá, ocupados demais, vivem “buscando a comida”, e, quando todos se saciavam, percebeu (tarde demais) que nunca fora alimentado de verdade. Não havia tempo para descansar no meio do caminho. Talvez a pedra estivera lá o tempo todo, pronta para sentar-se sob a sombra de uma goiabeira (estamos no interior) e sem apuro nenhum, quem sabe havia tempo para degustar o sabor das horas, assistindo abelhas pousarem nas flores da árvore.
Havia tempo para ser o grande Big Brother de si mesmo? Havia tempo para vivenciar um reel assistido por ninguém, só por mim? Temos todo o tempo do mundo, não depois, pois viver é agora. Felizes aqueles que ainda percebem o tempo consciente para ouvir compassadamente as batidas do próprio coração questionando quem passar apressado e perdido feito uma formiga: “dolce arte lavorare duramente.” Vale a pena? E depois? Afinal, até as formigas tiram férias. Capiche? E ainda picam. Aiiiiii!