Estamos todos no mesmo barco
Por Silvana Duarte
Em tempos de inteligência artificial, a sinceridade e o contato humano olhos nos olhos se tornou uma raridade, assim, Freud disse que esconder-se totalmente na fantasia pode entorpecer o sujeito, pois “a fuga é o instrumento mais seguro para se cair prisioneiro daquilo que se deseja evitar”. Antigamente, por exemplo tínhamos relações mais estreitas com nossos vizinhos, no entanto, hoje, o uso maciço das redes sociais fez com que esta fraternidade diminuísse bastante. Dona Margareth até hoje tem este costume, o de estreitar laços com sua vizinhança:
Dona Marguinha, assim, os íntimos a chamavam, de nome carismático e elegante, ela geralmente se relacionava bem com seus vizinhos, claro, isso dependia de quem fosse o vizinho. Como viera de um bairro de classe média alta de São Paulo, tinha ela um nariz um pouco empinado, casara-se cedo e logo se mudara para o interior, acompanhando o marido militar. Demorou, mas logo se acostumou com o bairro pacato da cidadezinha pequena, onde todo mundo conhece todo mundo…pelo menos de rosto e sobrenome. “Aquele é filho de quem?”. “Aquele é filho dos Alcântara, tem uma loja lá no centro.” “Ah! Então, é de boa família”. “E aquele? Sei lá, mudou-se com a família inteira, num tem nem sofá para se sentar, vieram lá dos cafundó dos Juda…” “Vishe, essa gente estranha aqui.” Dona Magareth participara também destes discursos nada receptivos, revelando se esquecer totalmente que ela mesmo, viera de outras terras.
A vizinha ao lado, se mudara após a morte do esposo, já estava esquecida a pobrezinha, então, fora viver com sua filha na capital paulista. Tinham elas a mesma idade, porém Dona Marguinha possuía uma memória de elefante e era forte como um touro.
A casa logo fora ocupada por um casal. Quando Dona Marguinha se deparou com a nova vizinha, se assustou, vestida com pouco traje, ela avistara ao longe a moça chegando, como estava de noite, não pode ver seu rosto. “Acabou tudo, agora sou vizinha de uma piriguete”.
Antes das dez horas o lixo já estava na rua, Dona Marguinha sempre acordou cedo, deixava tudo perfeito: casa limpa, calçada limpíssima, lixo em sua lixeira toda dourada. Com novos vizinhos, algo mudara, ela notou algo estendido na calçada, eram sacolas de lixo jogadas ali mesmo no chão. Mas o lixeiro já havia passado. O lixo passava o dia ali, provocando uma poluição visual estrondosa em Dona Marguinha.
“A “Piriguete deve levantar tarde, certamente não deve cuidar do serviço da casa, e aquele marido dela? Oque faz da vida???”. Dona Marguinha se indagava, curiosa, por isso, foi assuntar e logo descobriu que ele se chamava Valdecir e que estava desempregado, era um faz tudo, não tinha profissão definida.
“Estudar que é bom nada né? Mas juntar os trapos sem ter condição ah isso sim. Ai meu tenente se estivesse aqui, ia ver essa juventude, ia ficar boquiaberta”
O que mais deixava Dona Margarreth atônita era a música alta. “Como assim? E ainda estão felizes? Como se sustentam?”
Um dia o saco de lixo voara para sua calçada, rasgado, logo o lixo se espalhou, já que não havia lixeira na casa ao lado, eles colocavam no chão mesmo. Este fato se repetiu por muitas semanas. Dona Marguinha perdeu a paciência, prometeu dar um jeito na tal situação. Não aguentava mais varrer a sujeira de seus queridos vizinhos.
No dia seguinte estava determinada, esperou que eles acordassem ,já eram onze da manhã, mas não viu ninguém. Enquanto isso só murmurava: “será que é difícil decorar os dias em que o lixeiro passa? Eu quando tinha 19 anos era muito responsável, já estava prestes a casar e ter filhos, já sabia cuidar dos afazeres do lar….e uma lixeira quanto custa?”
Não vira ninguém naquele dia, pensou em ir até lá, mas desistiu. Ligou a TV para esquecer do ocorrido do lixo: “a guerra na faixa de Gaza mata dezenas de crianças”, “Agricultores da Europa fazem greve e invadem cidades”. Minha Nossa Senhora!!! Melhor cuidar do serviço de casa, o mundo está perdido mesmo. Graças a Deus onde vivo está uma paz, aqui não sofro destas chagas e maldições. Desligou a TV e fora varrer a calçada. A vizinha ainda não mostrara a cara. Enquanto ela varria o lixo da calçada que sempre vinha das sacolas rasgadas pelos cães de rua. Ela teve a ideia de ir até lá e chamar os maravilhosos vizinhos. Bateu palmas tão forte que era impossível alguém não despertar.
Valdecir abriu a porta e se aproximou do portão: Pois não?
“Boa tarde vizinho! Eu só vim aqui pra dizer sobre seu lixo, você não vê que todo dia os cachorros rasgam e …”
Devagarinho foi surgindo na porta a tal piriguete, Dona Margareth reparou o quanto ela era jovem, uma moça robusta, tanto que as roupas quase não cabiam em seu corpo, bom, as roupas nem poderiam ser chamadas de roupa, eram mais uma espécie de pijama diurno.
Dona Margreth interrompeu sua fala quando viu o tamanho da barriga da moça: “Meu Deus a Pirigueti está grávida???” Pensou alto.
“Dona Margareth, boa tarde, me desculpe, vamos arrumar uma lixeira, meu marido está quase terminando uma feita de calota de carro”. “Eu ia dizer isso pra ela”- Resmungou o marido.
Dona Margunha ficou muda e paralisada, só seu olhar se movimentara fixando nos pés da moça, ela calçava um chinelo carcomido. Sua unha estava amarelada, típico de quem tem micose, estava por fazer.
Sem discutir, a moça recolhera tudo com uma vassoura de capim já desgastada, pegou o lixo com as próprias mãos. “Olha tudo limpo, desculpa por tudo Dona Margareth”.
“Imagina, obrigada, ah por curiosidade, como sabe meu nome?
Ah, é que eu também me chamo Margareth, e já ouvi chamarem a senhora no portão, pensei que fosse eu.
Dona Marguinha se despediu, voltou para casa em silêncio. No dia seguinte, não varreu a calçada, mas fizera um bolo para levar a sua vizinha. “Grávidas sentem muita vontade.” Refletiu ela.
Passou por cima do lixo rasgado,
Naquela tarde tomaram café juntas, ficaram amigas.
No oitavo mês ela deu-lhe um macacãozinho de presente, mandara bordar uma fralda. O menino recebeu o nome do pai de Valdecir, Carlos.
Passaram-se seis meses, Dona Margareth foi presente em quase tudo, carregou Carlinhos nos braços.
Era uma tarde qualquer, num domingo cheio de sol, mas a casa estava vazia, um vizinho vira ambulância levar a família, e correra contar para Dona Marguinha.
A febre não passara. No dia seguinte Carlinhos falecera, infelizmente. No hospital as pessoas perguntavam o motivo: morreu de dengue o pobrezinho.
As duas se abraçaram fortemente em uma amálgama: duas Margareths. Uma, com muitas oportunidades na vida. A outra, apesar de pouca oportunidade, apenas desejava ser esposa e mãe.
Na segunda-feira, Dona Marguinha ligou a TV: Até esta segunda-feira o país registrou 1077 mortes por dengue.
Há diversos tipos de guerra, a mais perigosa é aquela que chega sem avisar é silenciosa, é vizinha, só esperando a oportunidade, não adianta se esconder, é preciso encará-la de frente, olhos nos olhos.