Crônica da semana de 20/05/2024

Por Silvana Duarte @silvanaduartepoeta

Crônica da semana de 20/05/2024
Por Silvana Duarte
@silvanaduartepoeta

Resgate social

“Levarei uma flor de plástico que durará mais, assim, não terei que voltar.” Logo que ouvi isso, me levantei da cama. Pedro, não entendeu minha atitude, já que eu voltara com lápis e um pedaço de papel para anotar a frase, pedi para que ele a repetisse, mas ele não se lembrava, mas eu sim, a anotei porque em um achei que daria uma boa crônica.
“Levarei uma flor de plástico que durará mais, assim, não terei que voltar”, pode traduzir a época em que vivemos. Pelo menos em boa parte do ocidente, as relações humanas estão cada vez mais frias, pessoas são escolhidas em aplicativos de relacionamento como em um cardápio de restaurante, quando percebe-se que não há compatibilidade ou afinidade, há o descarte, o dedo é se desliza novamente pela tela, em uma eterna busca de alguém que aparentemente possa preencher um vazio ou um desejo íntimo. O cardápio possui opções vastas, há sempre alguém para ser escolhido, há também uma busca frenética e incessante.
Me parece que existe um certo vício nesta eterna busca, o interessante não é encontrar alguém, mas sim trocar a pessoa por outra na primeira discussão ou quebra de expectativa, isso ocasiona de certo modo um afastamento social devido à falta de investimento a longo prazo em relações profundas.
Hoje é rara a visita de amigos e parentes, mais raro ainda são os momentos de lembrar das experiências que vivemos com amigos e famílias, antes sempre havia um tempinho para ver o álbum da família, sentado no sofá, enquanto o cafezinho cheirava na cozinha, as visitas eram sempre regadas à café e a bolinho de chuva. Tornou-se até falta de educação ir à casa de alguém sem avisar. Não acho que devemos ir sem avisar, mas acho que isso fez com que nos afastemos ainda mais das pessoas, pois sempre estamos culpando o outro pelo afastamento: “Ele não vem aqui me visitar, também não vou lá”.
Nos compadecemos muito mais de um cão abandonado do que um jovem dormindo nas ruas, de um usuário de drogas ou alcoólatra. O noticiário mostra por meio de suas manchetes a frieza em que a humanidade se encontra: “Uma lotérica em São José dos Campos, no interior de São Paulo, continuou funcionando mesmo com um homem morto no local.”. Que manchete irônica, afinal, a prática da empatia sempre está em pauta nas escolas e empresas, seja no conteúdo da BNCC: “A Competência 9 da Base Nacional Comum Curricular trata da importância de desenvolver e exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação entre os estudantes” ou na preparação de treinamentos empresariais. É a velha hipocrisia reinando como sempre, faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.
Há uma espécie de nevoa impregnada ditando nosso comportamento. Nas redes sociais eu me preocupo com a guerra do Oriente Médio, por outro lado, no dia a dia, não consigo doar sequer uma peça de roupa e ainda corto o ipê plantado em frente a minha casa por estar sujando a calçada.
Sem dúvida, há um estimulo deste afastamento social advindo do uso desmedido do mundo virtual. Afinal, ficarmos mais de uma hora em jogos virtuais, em aplicativos de relacionamento ou assistindo shorts vídeos, nos ocupa um tempo precioso, ocasiona, com certeza o distanciamento de amigos, faz perder encontros que só aconteceria durante uma interação olho no olho e o pior, nos afasta de quem mais amamos, nossa família. Muitos jovens dizem que gostam do afastamento social porque deste modo não estão sujeitos à possíveis decepções, eles criam um tipo de armadura: me isolo para não criar laços, assim ninguém me cativará. Que triste isso, pois a borboleta só é livre e linda porque resolveu sair do casulo.
Quando essa geração descobrir pode vai ser tarde demais, o dano envolve a própria saúde não só mental, mas física. Cientistas já comprovaram que pessoas que são mais sociáveis têm muito mais chance de saírem de um coma ou estão mais protegidas contra doenças mentais.
Afastar-se do outro é afastar de si mesmo, é cobrir o espelho em um dia de tempestade, mas esquecer-se de desligar a tomada os aparelhos e deixar a janela aberta, mais cedo ou mais tarde a conta chega. Se estamos na chuva é para se molhar. Ninguém veio para este mundo sem a ajuda de alguém, tampouco fará a passagem sem a mão alheia. Como dizia a minha avó: “até para carregar o caixão precisamos do outro.”
Isolado num telhado, à espera de alguém. Penso que muitos estão nestas condições. No fundo todos esperamos ser resgatados. No fundo, aquela visita inesperada vale sempre a pena, principalmente se ela leva traz consigo uma flor, não de plástico, claro, porque assim, ela terá que retornar, ver com ela está, só não pode demorar na visita.

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