Um dia sem celular

Por Silvana Duarte

@silvanaduartepoeta

Anastácia chegava em casa mais uma vez. “Graças a Deus! Pelo menos eu cheguei bem, tem gente que não chega nem a chegar”- pensava ela, aliviada, só não era aliviada a sua cabeça, lotada ela era de preocupações, ela tinha dessas cabeças que encontramos tipicamente na raça feminina: a raça que nunca descansa, nem mesmo em pensamento, literalmente.

Felizmente, Anastácia ainda raciocinava, ainda refletia sobre sua vida, talvez porque não tivesse filhos. Penso que a mulher que tem filho (especialmente mais de um), não reflete muito, não que seja algo ruim, é uma espécie de condicionalmente: “Prioridade é a criança, você acaba se esquecendo de você mesmo”- É o que ouço dizer as diversas mães colegas minhas.

Calma, deixa explicar, deixe-me contextualizar caro e maravilhoso leitor. Afinal, vivemos num tempo em que os indivíduos pouco ouvem, onde as pessoas estão cada vez mais reativas em relação à opinião alheia, tá aí os haters que não deixam mentir. Há aqueles que não permitem sequer que alguém apresente uma posição diferente sobre algum tema e já querem armar barraco. Felizmente, a escrita é mais empática, ela espera, ouve, feito professora de primário, a escrita pode parafrasear, pode explicar com paciência alguma ideia ou termo. É uma mãe amiga. Aqui, nestas linhas, por exemplo, tenho tempo e espaço para uma melhor interpretação. Aqui há tempo para divagação, como fiz agora, há tempo para voltar ao tema, como irei fazer agora:

Quando digo que Anastácia ainda raciocinava, pois não possuía filhos, é que ela talvez se dispunha de mais tempo para olhar para si mesmo. Experiência própria, já que alguns janeiros cuidei de minha sobrinha e esqueci totalmente de mim. Esquecia até de pentear meu cabelo. Se eu esquecia ações básicas de asseio, imagina, se eu ia ter um tempo para refletir sobre a vida, ou simplesmente ter um momento para o ócio criativo, sobre por exemplo como ser mais produtiva…

Como eu dizia, Anastácia então, chegou cansada e com a cabeça fervendo. Era final de uma sexta-feira, mas ela ainda não conseguia desligar sua mente. A cada cinco minutos ela pegava o celular para verificar as notificações. Em um insight, ela teve a ideia de livrar-se dele. Foi até a casa de sua mãe e o deixou lá. Relutou no início, pensou: “E se ocorrer uma urgência? Como vão me avisar?” Depois, ela mesmo encontrou a resposta: “Se for urgente, vão me achar, a informação chegará até mim, e urgências serão avisadas no 190 ou no 192, ufa…”

Voltou para sua casa refletindo mais, mas de um jeito especial. Percebeu que sua respiração já estava menos apressada e o pensamento mais estruturado. Chegou em casa foi diretamente tomar banho, a água caia lentamente em seus ombros, sentiu-a como se fosse a primeira vez. Lembrou-se que havia pipoca, vestiu um pijama confortável, escolheu um filme com tempo. Apreciou isso. Achou um romance de época. Levantou-se pulando do sofá, foi achar o celular, lembrou-se que não estava com ele, ficou contente com isso, estava inquieta é verdade, era uma inquietude que dissociava da ansiedade, estava feito uma criança que fez seu primeiro arco-íris, tinha expectativas como uma pré-adolescente esperando para assistir Caverna do dragão! Fez pipoca e suco Tang de abacaxi. Assistiu ao filme sem pensar em nada. Adormeceu em paz.

No dia seguinte, lavou roupa, limpou sua casa, leu oito páginas de seu livro. Seu esposo chegou do trabalho noturno, ela conversou com ele olhando olhos nos olhos. Ele foi dormir. Ela buscou rascunhos e estruturadamente anotou o que tinha que fazer. Sua respiração estava restabelecida e sua mente repousada. Não havia imagens digitais, sem notificações nem reels,

À tarde, ela escreveu um relatório que há tempo jazia na escrivaninha, replantou sua orquídea, abraçou e beijou seu gato, lavou a casinha da Mel, passou roupa, fez uma receita nova. Deu tempo de ter tempo, deu tempo de ter filhos.

Por Silvana Duarte

@silvanaduartepoeta

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