Crônica semana de 27/02

Por Silvana Duarte

Antes que te conhecesse eu já te amava

Viviam ali numa enorme fazenda, o pai era uma espécie de capataz, trabalhador e autoritário, ele  viera de longínquas terras tentar a vida no interior paulista. “Não estou criando vagabundo, para morar aqui tem que trabalhar”. Essa era seu discurso, lembrando diariamente seus três filhos que para morar ali era preciso trabalhar duro, uma  espécie de merecimento,  se quer comer deve plantar para isso, se quer comprar algo, deviam vender.  A fazenda era um belo lugar, havia  água fresca direto de um poço artesiano e a energia elétrica era gratuita.

Para vender e consumo próprio, mãe e filhos plantavam amendoim, milho, mandioca, etc. produziam também queijo. Havia uma linda horta, o pomar nascia pouco a pouco…

Cidinha, ainda que fosse a mais jovem, dos três irmãos, também não escapava de ter suas obrigações:  todos os dias deveria varrer o “terreiro”, catar as mangas que se espalhavam pelo chão e dar aos  nelores que ali perto pastavam, ansiosos, em receber o peculiar  e doce café da manhã; tratar dos passarinhos enjaulados em gaiolas também era sua tarefa. Ai se  caísse uma gaiola no chão! Cidinha pegava uma vara com um prego  a fim de  retirar  as gaiolas. Com medo, ela retirava com cuidado já que um  reio vivia pendurado na parede de madeira, lembrando-a do que poderia ocorrer.

A irmã mais velha era roçadeira, tinha uns braços fortes e um rosto indígena, apesar de ser loira. O irmão tinha cabelos cor de fogo, era especialista em capinagem. A mãe era uma amálgama de força, ora homem, ora mulher: lenhadora, doméstica, agricultora, cozinheira, choradeira e muito trabalhadora,  Tudo era trabalho,  tanto que não sobrava tempo para sentir dor nem tempo para sonhar.

Às quatro da tarde, o pai sempre chegava da roça, tomava banho. Cidinha é quem lhe colocava a botina. Ele ia  até a cidade, deixando sua família. Ia com sua bicicleta munida de um gigante farolete iluminador de noites sem claro da lua. Um dia destas escapadas, ele  voltou  trazendo na garupa da bicicleta uma caixa: “toma Cidinha encontrei essa caixa jogada lá na beira da estrada, você que só fica nos cadernos, pega ela”

Cidinha a abriu, estava repleta de enormes livros de capa dura, eram enciclopédias carregadas de textos e coloridas ilustrações. Os olhos da menina faiscaram sonhos. Não existia tempo para sonhar, mas havia tempo para ler. De férias, então, ela leu, percorreu as ciências, a história, a geografia… Cidinha viajou por diversos lugares  e  a outras épocas também.

Sob o clarão da lua, num balanço feito apenas de corda, amarrado na mangueira ela sonhou. Sonhou com a textura da areia , com o aroma do vento marítimo,  com as luzes do norte, sentiu o perfume da brisa dos campos franceses repletos de alfazema lilases, ouviu o forte ruído do metrô de Lisboa e os burburinhos dos pubs londrinos.

Sorte dela  por ter aberto a caixa de textos longos e imagens profundas.

Pobre  de muitos jovens que encontram nas redes sociais caixas destampadas contendo reels, sonhos curtos e rasos. Infelizes os que se iludem, felizes dos que sonham. Infelizes os que se afogam em ilusões  viciantes dos shorts vídeos. Apenas olham a caixa dos sonhos, se cansam, enjoando facilmente. Afinal, sonhar leva tempo, esforço, é um tipo de  trabalho a longo prazo. 

É preciso apaixonar-se primeiro, conquistar, é preciso ler primeiro, ver por detrás das palavras, profetizar os sonhos pela janela da mente.

Diferente de um boa noite de sono, é preciso sonhar para então acordar e  poder  usufruir de um sonho real.

Cidinha abriu seus olhos, caminhou,  inspirou. Viu diante de seus olhos o oceano Pacífico e disse: “antes que te conhecesse eu já te amava”. (Fernando Pessoa e Santo Agostinho).

Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Pinterest
últimas no jornal o democrático
agenda regional

Próximos eventos